Resenhas miúdas: Shabaka and The Ancestors

Shabaka Hutchings (segundo à esq) e The Ancestors: afrojazz em chamas para um novo tempo

Se tudo tivesse saísse como planejado, eu teria viajado para Nova York há quinze dias e teria passado a noite de segunda-feira, 30/03, vendo o show de lançamento de “We are sent here by history”, novo álbum de Shabaka and the Ancestors, ao lado de centenas de pessoas, no Bowery Ballroom, um teatro erguido em 1929, ano da Grande Depressão. Felizmente, tudo deu errado. Ou certo. Com sinais de um novo abalo mundial por toda a parte, a viagem teve que ser cancelada na hora H, assim como o show, como me avisa o email do Bowery (abaixo), com a cidade transformada no epicentro da pandemia do coronavírus nos EUA. Agora, trancado em casa no Rio, com o mundo aqui e lá fora em suspensão, ouço o disco há dias, sem parar, extasiado com sua potência e com a forma como seu protagonista, o saxofonista inglês, de ascendência caribenha, Shabaka Hutchings, usa o instrumento para “falar” sobre sinais de vida, morte e renascimento.

Justamente ele, o motor de dois outros projetos incendiários, banhados de afro-futurismo, repletos de subversões jazzísticas, um deles batizado com um nome que agora arrepia: The Comet is Coming (o outro é Sons of Kemmet). Com Shabaka and the Ancestors e seu novo trabalho, porém, ele atinge um outro patamar. Formado por Hutchings e músicos sul-africanos (a base tem o baixista Ariel Zamonsky, o baterista Tumi Mogorosi e o percussionista Gontse Makhene), o grupo cria um idioma musical particular, através do qual reflete sobre “o que acontece quando a vida como a conhecemos não pode mais continuar”, nas palavras do saxofonista.

Com uma alucinante costura de tradição (griot) e atualíssimos comentários sociais, de trechos instrumentais e cantados (em zulu, pelo vocalista convidado Siyabonga Mthembu), o disco – gravado em Johannesburgo e Cidade do Cabo – ondula num ritmo próprio, em faixas que se explicam pelos títulos (“They who must die”, “We will work on redefining manhood”, “Go my heart, go to heaven”, esta com clipe inspirado pelo filme “Nós”, de Jordan Peele). No centro de tudo, a “voz” de Shabaka Hutchings, que já declarou tocar sax (tenor) como se fosse um MC de reggae, “cuspindo fogo”.

Elétrico e meditativo, politizado e espiritual, Coltrane e Capleton, jazz e não jazz, “We are sent here by history” é um daqueles raros discos que definem um momento da história, a trilha sonora (im)perfeita para a chegada do metafórico cometa antevisto por esse gigante de uma nova música. E, esperamos, de um novo tempo.

Foto de divulgação/ Tjasa Gnezda