Música e cérebro, uma relação sem quarentena

Como todo algoritmo sabe, existe uma trilha sonora para cada momento da vida. Não por acaso, nesse momento brabo em que estamos vivendo, com um pesadelo (covid-19) dentro de outro pesadelo (JB-17), o Spotify está me oferecendo suas playlists de “Meditação e Relaxamento” e “Calma”, enquanto o iTunes tenta me empurrar as suas de “Abraços virtuais” e “Piano chill” (não entendi a de “Sertanejo VIP). Mas número algum pode adivinhar as incontáveis conexões que a música pode fazer com o nosso cérebro, ainda mais em situações extremas. Não adianta pensar que só Beyoncé será suficiente para nos proteger do fim (?) do mundo como o conhecíamos. Viu aqueles zumbis nas carreatas?

Assunto de estudos, debates e reportagens há tempos (como essa ótima da “Wired“), essas conexões – e as portas da percepção abertas por elas – nunca intrigaram tanto quanto agora, quando mais nos ligamos nelas. “(Saber) O que seu cérebro diz sobre a música é uma maneira de entender os mais profundos mistérios da natureza humana”, diz Daniel Levitin, neurocientista, músico, engenheiro de som, produtor e autor do livro “A música no seu cérebro” (Editora Civilização Brasileira). “Quando falamos em música e cérebro, não existe receita de bolo. O cérebro de cada indivíduo responde de forma muito particular a diferentes estímulos musicais” afirma Julie Wein, Doutora em Neurociências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atriz e cantora (seu álbum de estreia, “Infinitos encontros”, acaba de sair pela Biscoito Fino), com quem eu conversei, brevemente, por email. Mas foi como se estivesse ouvindo tudo.

1) Todos vimos imagens das pessoas na Itália, cantando nas varandas, numa forma de quebrar a dureza da quarentena através da música. Em um momento de tanta incerteza e angústia como o atual, como a ciência explica o conforto que a música pode trazer ? Como ela atua no cérebro na ativação de hormônios como a dopamina e a serotonina?

Julie Wein – A música é um fator central e indispensável para todas as culturas humanas do mundo. Em tempos de quarentena e isolamento social, um aumento da motivação individual em torno da arte e música é algo esperado e fundamental.  Na sociedade, tanto a prática quanto a escuta musical atuam como fatores de primordial importância para a coesão de grupos sociais. É lindo o ato das pessoas se comunicando através de música pelas varandas, isso é um exemplo concreto de como a música pode propiciar a sensação de coesão social. Acho fascinante o impacto que a música é capaz de provocar sobre nossas emoções. No nosso cérebro existe um circuito chamado circuito da recompensa que se ativa quando sentimos prazer com algo. Nos últimos 20 anos, os estudos na neurociência da música vêm mostrando, de forma consistente, que a música é capaz de ativar esse circuito. Inclusive, a atividade de uma região específica desse circuito, chamada nucleus accumbens, é capaz de prever o nível de prazer evocado por determinada música em uma pessoa, inclusive, o quanto de dinheiro uma pessoa estaria disposta a investir para ouvir determinada música. Essa relação “desejar/querer” ouvir está diretamente ligada à liberação de hormônios do prazer que determinado comportamento pode causar, nesse caso, ouvir música. Além desses hormônios, a música pode atuar de forma benéfica sobre a pressão sanguínea e o batimento cardíaco.

2) Naturalmente, músicas calmas e suaves são as mais indicadas para induzir ao relaxamento. Mas ouvir sons novos ou mesmo sons mais complexos também pode ter um efeito positivo no cérebro? É possível criar novas sinapses e assim ampliar a capacidade de lidar com o estresse?

Julie – Estudos apontam que o fator mais importante para indução de relaxamento através da música é o grau de preferência pela música. Ou seja, o quanto a pessoa gosta de determinada música. Logo, as preferências individuais devem ser utilizadas como critério utilizado para escolher músicas que facilitem o relaxamento, pois uma música pré-categorizada como “relaxante” nem sempre será necessariamente “relaxante” para todas as pessoas. Isso de certa forma responde também à sua pergunta sobre sons novos ou mais complexos. No fundo, a grande questão é a preferência pessoal. Quando falamos em música e cérebro, não existe receita de bolo. O cérebro de cada indivíduo responde de forma muito particular a diferentes estímulos musicais. É muito difícil generalizar gosto musical tanto através do relato pessoal, quanto pelo cérebro. Um estudo, por exemplo, mostrou que não haver diferença significativa no grau de relaxamento de acordo com o estilo dentre os tipos de música testados. Exceto a música atonal, que provocou menos relaxamento. Sobre sons complexos, ainda existe alguma indefinição sobre o assunto, depende do nível de complexidade, o que exatamente seria essa complexidade, e aí entramos num assunto muito específico, cheio de desdobramentos. Algo que acho muito interessante é a capacidade da música de nos transportar para um outro ambiente. Isso acontece porque a música é capaz de alterar a percepção do nosso cérebro sobre nossas emoções e sobre a realidade, criando novas conexões. Ouvir lançamentos novos também pode ser muito eficiente, pois o efeito de novidade para o cérebro pode direcionar boa parte de sua atenção e concentração para aquele novo elemento sonoro, desfocando de outros pensamentos.

 3) Há diversos relatos de pessoas com dificuldades para dormir durante a pandemia, lidando com insônia e pesadelos. Ouvir determinada música nos fones de ouvido antes de dormir, por exemplo, pode ter um efeito positivo no sono? A música pode ser usada para moldar (ou modular?) as ondas cerebrais antes ou durante o sono? Pode ajudar a liberar hormônios associados ao prazer em vez dos hormônios do estresse?

Julie – Na literatura, existem alguns indícios comportamentais de que ouvir música antes de dormir pode ter um efeito positivo no sono. Pesquisadores levantam algumas possíveis explicações para isso. Um estudo recente analisou as principais explicações, dentre elas: relaxamento; distração; entretenimento; mascaramento (obscurecendo ruído nocivo de fundo com a música); prazer; expectativa (crenças culturais em torno da música). O fator com achados mais consistentes de relato subjetivo para melhora do sono seria o mascaramento. O relaxamento e entretenimento foram encontrados como fatores em alguns estudos, mas não em outros. Distração e prazer são explicações com mais inconsistência de resultados entre os estudos. De qualquer forma, sabemos que a música pode, sim, ajudar a liberar hormônios do prazer em vez dos hormônios do estresse. Vale ressaltar que esses fatores foram analisados subjetivamente, ou seja, quando ouvimos o relato do participante em questionários e medidas psicológicas que inferem qualidade de sono e latência. Quando olhamos para o efeito da música no cérebro antes do sono, ainda não há evidências suficientes para entendermos como e se esses efeitos comportamentais se refletem no cérebro. No entanto, existem estudos que têm investigado a possibilidade de criar música a partir do padrão de ondas cerebrais durante o sono (adquiridas com EEG, eletroencefalografia). Um estudo recente nessa área aponta indícios de que a música derivada de ondas cerebrais de baixa frequência exerce um efeito positivo sobre a qualidade no sono. Outras condições, como a música derivada de ondas cerebrais do sono REM ou ruído branco, parecem não exercer o mesmo efeito positivo sobre a qualidade do sono.

4) Uma pergunta particular: com seus conhecimentos de neurologia e sua prática como cantora e instrumentista, mudou alguma coisa na sua relação com a música nesse período?

Julie – Sim. Mudou bastante, em vários aspectos. Tenho ouvido muito mais música e escolhido músicas novas, coisas diferentes para ouvir. Estou buscando conhecer novos sons. Isso tem sido muito importante. Também mudou minha relação com o instrumento. A sensação de tempo/urgência parece diferente. De uma forma geral, está mais orgânico para mim entender o tempo das coisas.