Resenhas miúdas: Mhysa, Rachel Grimes e Doon Kanda

Mhysa é E. Jane, artista visual que vira ‘diva queer negra para uma cyber resistência

Nevaeh – Mhysa

Em março de 2020 – lembraremos dessa data para sempre -, um tipo de r&b que é menos eufórico e mais reflexivo, menos pegação e mais introspecção, menos festa e mais apocalipse pode cair estranhamente bem. No paraíso ao avesso de Mhysa – leia na contramão o título do seu álbum de estreia, “Nevaeh” -, o ancestral gospel é transformado numa plataforma futurista para a elevação espiritual. Autodeclarada “diva queer negra e estrela pop do underground para uma cyber resistência”, o que quer que isso signifique, Mhysa é E. Jane, artista visual e bolsista do Harlem Studio Museum, um espaço de criação artística no mítico afro-bairro de Nova York. Fora do expediente, E.Jane vira cantora, compositora e instrumentista autodidata, disposta a quebrar todas as correntes (o nome artístico vem da forma como era conhecida Daenerys Targaryen, a rainha dos dragões vivida por Emily Clarke em “Game of thrones”).

Lançado pelo infalível selo britânico Hyperdub, “Nevaeh” é menos cerebral e pretensioso do que parece. Sua densidade e sua imperfeição – ou seja, seus trunfos – refletem a própria personalidade de sua autora, que sofre de distúrbio bipolar e escreveu/desenhou boa parte do disco após sair de uma crise que a levou ao hospital. Em busca de serenidade, Jane juntou misticismo e ficção científica, sons tradicionais e experimentais, criando canções que parecem sempre prestes a se dissolver no ar. O cartão de visitas é arrepiante: o poema de Lucille Clifton, várias vezes indicada ao Pulitzer, “Won´t you celebrate with me” (“Venha celebrar comigo/Todo dia alguém tenta me matar, mas não consegue”), declamado sobre poucas notas no piano. Depois, citações e subversões de Nas (“If I ruled the world” vira “Breaker of chains”, acapella) e Neil Armstrong (o standard “When the saints go marching in” ganha trechos como “Quando os ricos vão trabalhar” e “Quando temos comida na mesa”) surgem como riscos no céu, ao lado de grooves transmorfos como “w/me” (“Não vou à festa, vou ficar em casa e me tocar”) e baladas fantasmagóricas (“before the world ends”, assim mesmo, em minúsculas, traz o refrão “Quero gozar antes do mundo acabar”). E se você achar tudo isso muuuito complicado para o momento, é só trocar Mhysa por Bruno Mars, que é OK e não vai te perturbar até o fim do mundo como o conhecemos.

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“The way forth” – Rachel Grimes

Rachel Grimes criou uma ópera folk de olhar feminista a partir da história de sua família no Kentucky, EUA

A expressão “águas passadas” gira em torno de “The way forth” como a corrente de um rio profundo. Mais recente trabalho da pianista, arranjadora e compositora norte-americana, o disco revê, com um delicado olhar feminista e um forte senso crítico, a história da família da artista e, por tabela, do seu local de origem, Kentucky, interior dos EUA, terra do Kentucky Fried Chicken e de um racismo antigo e intragável. Descrito pela autora como uma “ópera folk”, “The way forth” nasceu quando Rachel – autora de trilhas sonoras, trabalhos eruditos e ex-integrante de um grupo de post-rock – teve que mexer nos arquivos da família quando seus pais precisaram ser transferidos para um asilo de idosos. O contato com aquele material – cartas, fotos, diários, registros passados de geração a geração por séculos – bateu tão fundo em Rachel que a ideia do disco foi inevitável.

Com a ajuda da historiadora Paula Falvey, ela aprofundou suas pesquisas e voltou à época dos colonizadores, ali perto de 1775, cruzando e contextualizando um passado de ganância, violência racial e exploração dos recursos naturais, mas também de esperança, solidariedade e paixão pela terra. Usando o ponto de vista de diversas mulheres, presentes nos documentos ou inspiradas por eles, Rachel criou as letras de “The way forth”, embaladas por violinos, banjos, harpas e imponentes orquestrações que dão um tom cinematográfico ao trabalho. Um documentário vem em seguida, mas basta ouvir o disco nos fones para imaginar um filme por conta própria. O meu parece “A cor púrpura” misturado com “A árvore da vida”.

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“Labyrinth” – Doon Kanda

Responsável pelos surreais visuais de Arca, Doon Kanda revela ser um pé de valsa eletrônico

Criaturas fantásticas habitam a cabeça de Jesse Kanda. Artista visual mais conhecido pelo marcante trabalho ao lado de Arca – a trans-gressora criadora venezuelana, que virou a cabeça até de Bjork -, seu estilo tem um pé no surrealismo e outro em uma dimensão paralela, onde vivem seres que parecem saídos do filme “O labirinto do fauno”, de Guillermo Del Toro. Nascido no Japão e radicado em Londres, Kanda também faz música, usando o codinome Doon Kanda. E só o mais inocente dos seres humanos poderia esperar pop radiofônico do seu trabalho. Lançado pelo selo Hyperdub – ó, de novo! – “Labyrinth” é o primeiro álbum de Kanda, após dois elogiados EPs. Mesmo soando menos extremo e provocativo que a obra da sua parceira, o disco é desafiador da primeira à 13ª faixa.

Sinfonia eletrônica criada em andamento parecido com o de uma valsa, “Labyrinth” tem movimento e melodia, mas abraçados de forma pouco usual, por entre beats, violinos e ondas de synths. “Polycephaly” parece o tema de um filme de James Bond dirigido por Alejandro Jodorowsky, “Gut” é um baile na corte de Kruder & Dorfmeister. “Pieridae” soa como um baile funk realizado numa fenda tectônica no Pacífico. E perdidos no meio desse labirinto, a Fada e o Homem Pálido dançam alegremente.

Fotos de Elle Perez (Mhysa) e divulgação