Na mesa com U-Roy

Aos 77 anos, o bamba do reggae, o mestre do canto falado, o avô do rap, de passagem pelo Brasil, saboreia um prato de sopa e o respeito dos seus herdeiros

A criança e a sombra de Hollywood vão entrar em cena no final. Por hora, o que está acontecendo é o seguinte: U-Roy – o batuta do reggae, o homem que popularizou o canto falado, que foi a semente para o surgimento do rap – está sentando à minha frente, no segundo andar de um restaurante na Cobal do Humaitá. De chapéu coco, sapatos pretos, blusa e calça cinzas, ele toma uma sopa de legumes, fervendo como a temperatura do lado de fora, cinquenta graus e lá vai fumaça, num dos dias mais quentes do ano (até agora, Greta). Aos 77 anos, porém, o Primeiro do Seu Nome, Reis dos MCs, Lorde dos Rappers e Protetor das Sete Rimas Regueiras não está nem aí para o calor.

– Me sinto muito em casa no Brasil. Gosto das comidas, das frutas, da música e desse clima jamaicano – brinca ele, que permanecia calado e semi-adormecido na mesa, em modo economia de energia, até eu ligar o gravador.

Na verdade, U-Roy (Ewart Beckford) despertou faz tempo. No começo dos anos 60, com a Jamaica celebrando sua independência do Reino Unido, ele pegou o microfone e não largou mais. Influenciado por um deejay chamado Count Matchuki (nota do pai: na JA, MCs são chamados de deejays), U-Roy começou a deitar falação por cima de bases instrumentais de equipes de som de feras como Coxsonne Dodd e King Tubby. Mas não era papo furado. As intervenções, chamadas de toast, tinham ritmo, tinham métrica e, acima de tudo, tinham um estilo próprio, que não deixavam o baile parar. Diz a lenda que numa noite, durante uma festa de Tubby, a energia caiu por causa de uma forte chuva e U-Roy manteve o público no local com seus improvisos até a luz voltar, quase uma hora depois.

– O curioso é que eu não sou muito de falar, mas quando estou em frente a um microfone parece que viro uma outra pessoa – diz enquanto molha uma torrada de pão na sopa.

Quando, finalmente, entrou em estúdio para gravar pela primeira vez, em 1970, U-Roy já era um nome respeitado nas quebradas de Kingston e arredores. E não deu outra: “Wake the town” e “Wear you to the ball”, seus compactos de estreia, foram direto para o topo das paradas. E a carreira de U-Roy não parou mais. Foram mais de vinte álbuns e inúmeros singles, que atravessaram a história do reggae – do rocksteady ao ragga, do dub ao dancehall – atingindo também os EUA, onde seu estilo de ritmo e poesia serviu de rota para a descoberta do rap e do hip-hop. Por tudo o que fez nesses 50 anos e pelo que representa para a música jamaicana, U-Roy deveria ter uma estátua no aeroporto de Montego Bay e andar de limusine verde, vermelha e amarela. Mas, no momento, tudo o que ele quer, depois da sopa, são duas fatias de pizza para viagem.

– Não sei se tive essa importância toda, mas fico feliz de ter vivido tantas coisas e ainda estar por aqui – conta ele, que recebeu, em 2007, a Ordem do Mérito na Jamaica por sua contribuição à música e foi homenageado em Nova York, no fim do ano passado, “condecorado” como “Rei dos deejays”. – Tive mais sorte do que muitos dos meus contemporâneos, nunca fui roubado nos meus direitos, consegui ter um selo, uma equipe de som, criei meus filhos, tenho minha casa e consigo viajar pelo mundo me apresentando, ainda hoje, aos 77 anos. Sou um sobrevivente. E sou grato por isso.

Curiosamente, o motivo para a vinda de U-Roy ao Brasil pela terceira vez – com shows e festas no Rio, São Paulo e Salvador – é o lançamento de uma nova versão de seu primeiro hit. Regravada com o apoio da estelar dupla Sly & Robbie, “Wake the town” é um chamariz para o recém-criado selo Trojan Jamaica, idealizado por Zak Starkey (filho de Ringo Starr) e Sharna “Sshh” Liguz, ambos também presentes na viagem, que serviu para lançar um puxadinho local, Trojan Brasil. Por este, vão sair singles do Covil do Flow (grupo de hip-hop da Rocinha) e B Negão.

– Muitas coisas passaram pela minha cabeça quando entrei no estúdio para regravar “Wake the town”. Lembrei das pessoas que conheci, das pessoas que se foram, do impacto que a música teve na época, quando deejays ainda não tinham seu valor reconhecido. Foi um grande mergulho no passado. E acho que essa regravação fecha um ciclo na minha vida – conta ele, fã de novos talentos do reggae, como Chronixx, Protoje e Spice. – São meus herdeiros, sabe? Todos vêm sempre falar comigo. É muito bom ter herdeiros, saber que eles vão levar adiante meu trabalho, com talento e estilos próprios.

As pizzas chegam, cheirosas e embaladas. Desligo o gravador e nos encaminhamos para a saída. No caminho para o caixa, uma mulher me aborda, acompanhada pelo filho, com uniforme escolar. Eles querem um autógrafo do artista famoso que está ao meu lado.

– O senhor pode pedir para ele autografar o caderno do meu filho? – pergunta a mãe. – É o Morgan Freeman, não é?