Trojan injeta reggae nas canções rebeldes do blues

Detalhe das gravações do álbum “Red, gold, green and blue” na Jamaica (isso, sorria, você está sendo fotografado, Robbie Shakespeare)
No mundo do reggae, as versões nunca são conflitantes. É da sua natureza ouvir uma história e depois contar as coisas à sua maneira. Não apenas gêneros inteiros foram adaptados e subvertidos ao chegarem à Jamaica – soul, rhythm and blues e funk , por exemplo – como também inúmeras canções desses estilos foram e continuam sendo moldadas ao bumshakalaka da ilha caribenha. Ray Charles, Stevie Wonder, Sade, Michael Jackson, Bob Dylan e George Michael são alguns dos astros pop que tiveram seus hits transformados pela mística natural do reggae. A essa longa lista junta-se agora o álbum “Red, gold, green and blue”, que marca a estreia do selo Trojan Jamaica, reunindo um condecorado time de veteranos, como Mykal Rose, Big Youth, Freddie McGregor e Sly & Robbie, em (mais) uma missão de reconstrução musical. O selo, uma ramificação dentro da honorável gravadora britânica, chega, como diz o release oficial, “para explorar o diverso legado musical da Jamaica, desde suas raízes africanas até as infinitas inspirações vindas da música negra norte-americana”.
A diferença, nesse caso, é que não se trata apenas de embalar um docinho do Simply Red (como Earl 16 fez com “Holding back the years”) ou um baladão dos Commodores (como Jimmy Lindsay fez com “Easy”). A matéria prima do álbum – que faz parte de um projeto curiosamente idealizado por Zak Starkey (filho de Ringo Starr) e pela cantora australiana Sharnal Liguz* – é um pote com clássicos do blues, do rhythm and blues e dos primórdios do rock, imortalizados por mestres como Robert Johnson, Muddy Waters, Elmore James e Bo Diddley. São canções rebeldes, como já disse Bob Marley, repletas de dor e paixão, que surgiram nas margens do Mississipi e nos becos de Chicago assim como poderiam ter nascido nos guetos de Kingston ou nas areias de Negril, caso a rota do navio negreiro tivesse sido outra.
(Olha esse curta sobre o projeto, exclusivo para este blog, aparentemente)
Produzido por outro veterano, o músico britânico Youth (que já trabalhou com U2, Adrian Sherwood e The Verve), o disco, felizmente, não afundou nessa complicada travessia e muito menos gerou uma pororoca pelo brusco encontro dessas correntes. Em vez disso, Youth e SSHH (nome artístico da dupla Starkey e Sharnal) conseguiram conduzir o trabalho por rotas seguras, sem grandes riscos. E assim, em meio a um clima de descontraída jam session, os melhores momentos de “Red, gold, green and blue”, os mais densos e aventureiros, acabaram ficando nas pontas. Caso de Mykal Rose, que abre o disco com uma áspera e densa interpretação de “I put a spell on you”, que mantém a dramaticidade obsessiva do original de Screamin Jay Hawkins.
Depois, a onda segue suave, perturbada apenas ocasionalmente pela mão pesada de Starkey nas guitarras, com Freddie McGregor desbelotando “Come on in my kitchen”, do assombroso Robert Johnson, com Robbie Shakespeare se arriscando nos vocais bluseiros de “Bring it on home”, de Willie Dixon, com a novata Phylea Carley dando cores feministas à marcante “Baby please don´t go”, de Muddy Waters, e com Big Youth mantendo o rebolado maroto de “Gunslinger”, de Bo Diddley.
E no final, quando tudo já parece confortável e seguro demais, vem outra sacudida, com o cantor Kiddus I (protagonista de uma cena inesquecível no filme “Rockers”) radicalizando a versão de “Sun is shining”, de Elmore James, ao acrescentar um trecho da música homônima de Bob Marley. Com essa ousada costura, que poderia ter envolvido todo o disco, ele cria um mágico tapete dub que leva os dois originais (o primeiro de 1960, o segundo de 1971) ao infinito e além reggae. Mas vem aí o volume dois, quem sabe com mais aventuras?
* Silvio Essinger explica melhor as origens do selo Trojan Jamaica nessa entrevista com Zak Starkey no “Globo”
Foto: Divulgação/Jill Furmanovsky