Resenhas miúdas: The Comet Is Coming, Sunn O))) e Cinematic Orchestra

Shabaka Hutchings (centro) e o The Comet Is Coming: um corpo incandescente no jazz britânico

“Trust in the lifeform of the deep mistery” – The Comet Is Coming

Pediram tanto que o cometa chegou. E chegou, na verdade, nem foi hoje. The Comet Is Coming já está entre nós desde 2016, quando Shabaka Hutchings (sax), Dan Leavers (teclados) e Max Hallet (bateria) tocaram (n)a Terra pela primeira vez com seu devastador jazz interplanetário. Mas só agora, com o seu segundo álbum, “Trust in the lifeform of the deep mistery”, é que o trio inglês – místico de uma ponta à outra – explodiu de vez, espalhando partículas incendiárias por toda a parte.

Tendo em sua cabeleira traços de Sun Ra, rock progressivo, 808 State e Prodigy, o TCIC gira sua longa cauda em voláteis faixas instrumentais como “Super zodiac”, “Astral flying”, “Summon the fire” e “Timewave zero”, nas quais o entrelace dos três músicos é tão intenso que desloca a noção de grime, jungle e todas as coisas eletrônicas no tempo-espaço do seu jazz livre. Um disco desorientador e fascinante, pra ouvir brincando de esconde esconde numa nebulosa.


Os sacerdotes do Sunn O))): túnicas, distorções e o metal como um mantra em disco produzido por Stevie Albini

“Life metal” – Sunn O)))

Vai por mim. Pegar o metrô em Botafogo, rumo à Madureira, na hora do rush, com “Life metal”, do Sunn O))), tocando alto nos fones de ouvido é um deslocamento (da realidade) tão intenso que faz a mente sair um pouco fora dos trilhos. Em vez do relaxante som ambient desenhado por Brian Eno para espaços semelhantes (aeroportos, no caso), o que se recebe do titânico grupo de Seattle são fortes descargas de energia sonora, partículas de metal pesado que –  divididas em quatro faixas, nenhuma delas com menos de dez minutos, nenhuma delas com ritmo ou qualquer coisa parecida com a estrutura de uma canção – parecem se espalhar pelo vagão lotado, ricocheteando na classe trabalhadora que segue espremida como sardinha em lata.

Culpa, talvez, do mestre condutor, digo produtor Steve Albini (Nirvana!), que extraiu, com máxima fidelidade, a lenta e inebriante distorção das guitarras dos sacerdotes Stephen O’Malley e Greg Anderson, gravadas em fitas magnéticas, método do tempo em que criaturas igualmente pesadas, os dinossauros, andavam na Terra. Tudo parece vibrar de forma colossal, com pequenas pausas a cada parada. A chegada na estação final e a retirada dos fones, quase uma hora depois, traz uma sensação de estranhamento e êxtase. A vida metálica do Sunn O))) pesa uma tonelada. E eu, mesmo assombrado, curto passar por ela.

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O primeiro lançamento do majestoso grupo em 12 anos é uma meditação sobre a crença na era das mentiras

“To believe” – The Cinematic Orchestra

Pode acreditar: “To believe”, novo álbum da The Cinematic Orchestra, é um mágico elixir contra a ansiedade, a tensão e a pressa que nos apertam em tempos de Bolsonaro-Trump-Brexit-Populismo-Terra plana-mentes insanas. Pra começar, pelos 12 anos que levou para ser lançado. Depois, pelos seus 54 intensos, dramáticos e majestosos minutos de duração em tempos de canções pop cada vez mais curtas porque o mestre algoritmo assim determinou. Por fim, pela total e absoluta falta de novidades no som da banda, que bateu no teto com “Man with a movie camera”, lá em 2003. Deixe esse bastão ser levado adiante por grupos como o The Comet Is Coming, por exemplo, que avança furiosamente nos experimentos com o jazz que a Cinematic carregou desde sua estreia com “Motion”, de 1999.

“To believe” – uma meditação sobre a crença na era das mentiras descaradas – traz a banda de dois (Jason Swinscone e Dominic Smith) “apenas” polindo esse valioso atributo chamado estilo – trilhas sonoras imaginárias, situadas em algum lugar entre o hip-hop e o amor supremo de John Coltrane, aqui estreladas por convidados como Roots Manuva, Moses Sumney, Heide Vogel e Miguel Atwood-Ferguson. Mesmo um pouco intimidada, sem dúvida, pelo inesperado sucesso de “To build a home”, do álbum anterior, “Ma fleur”, a música da Cinematic Orchestra ainda é capaz de emocionar e partir o coração como um filme (“Roma”) de Afonso Cuáron. Ouça e veja você mesmo.