A lista socialista de sons alienígenas de 2018 que eu não fiz

A dupla da Indonésia Senyawa: seu álbum “Sujud” é uma lava incandescente de metal, folk e drone

Dando razão a esse grande filósofo verde oliva, o generalíssimo Hamilton Mourão, vice-presidente do Brasil varonil, eu, indolente como um indígena e malandro como um africano, não fiz, novamente, uma lista de alguns álbuns que curti ao longo do ano passado. Não fiz mesmo. Se fizesse, citando só aqueles que são alienígenas ao nosso país e certamente querem entrar ilegalmente aqui, dilapidando nossos valores cristãos, teria saído algo mais ou menos assim. Dois pontos.

1) “Sujud” – Senyawa – Ouça este disco bem alto, nas caixas ou nos fones, e você vai sentir a mente sacudir como se um vulcão tivesse explodido dentro da cabeça. Das sete faixas do álbum da dupla da Indonésia – formada por Rully Shabara, com seus vocais extremos, e Wukir Suryadi, criador dos próprios instrumentos, de cítara à guitarra – flui uma lava incandescente, derretendo elementos de metal, folk e drone. Repense sua ideia da paradisíaca Bali com essa anti-surf music dos infernos.

2) “Homowo” – Basa Basa – Fosse só pela eletrizante “African soul power”, esse álbum do grupo de Gana já valeria ouro. Mas “Homowo” – gravado em 1979 e relançado em 2018 pelo selo holandês Vintage Voudou – tem muito mais do que um single. Suas outras sete faixas dão um mágico retrato da música feita pelo gêmeos Nyaku (Joe, bateria, percussão e vocais; John, baixo, percussão e vocais), reis do Napoleon Club, discoteca que agitou Acra naquela década. Com a produção de Themba Matebese, que também tocou sintetizadores, o grupo chegou ao apogeu nesse seu terceiro álbum (são seis no total), misturando, divinamente, highlife, soul e disco-music.

3) “Voice of resistance” – Rim Banna – O derradeiro álbum da cantora palestina Rim Banna foi gravado com a artista já nos capítulos finais de sua luta contra o câncer. Mesmo com a voz abalada pela doença, ela consegui gravar seus poemas com a ajuda do tecladista norueguês Bugge Wesseltoft e do produtor e DJ tunisiano, do militante grupo Checkpoint 303. Usando uma técnica chamada sonificação – que transforma dados em sons –, MoCha “traduziu” os registros hospitalares de Rim (como exames de raios X e tomografias computadorizadas) em arquivos sonoros e, posteriormente, em batidas e efeitos musicais.  Melancólico e arrepiante, “Voice of resistance” foi lançado um pouco depois da morte de Rim, em março do ano passado.

4) “Your queen is reptile” – Sons of Kamet – No sopro do músico londrino Shabaka Hutchings, 33 anos, o jazz é um animal ativo, inquieto e politizado. É essa eletricidade e tensão que move o terceiro álbum do Sons of Kamet, grupo liderado por Hutchings, ao lado de Theon Cross (tuba) e Seb Rochford e Tom Skinner (bateristas, isso mesmo, dois). “Your queen is reptile” dá uma tesoura voadora na realeza britânica e oferece, no título de cada música, notáveis mulheres negras como inspiração alternativa. Ao fundo, um som efervescente, com a tuba fazendo a marcação do baixo, as baterias dobrando e retorcendo o ritmo e o sax conduzindo essa agitada conversação, com participações do MC e produtor Congo Natty (um dos pais do jungle) e do poeta Josh Idehen. Esqueça o tradicional “uisquinho”. Esse jazz é pra ouvir com um copo de gelo e uma lata de energético na mão, quicando na sala.

5) “An angel fell” – Idris Ackamoor & The Pyramids – Sun Ra e Fela Kuti certamente abençoariam mais esse luminoso trabalho do saxofonista norte-americano Idris Ackamoor e seu grupo, The Pyramids, uma trupe formada nos anos 70, que circulou pela Europa e África, misturando música, dança e  teatro, gravando discos cultuados, até desbandar no fim da década. “An angel fell” mantém a onda de “We be africans”, o disco de 2016 que marcou o renascimento de Ackamoor e cia, com seu jazz -funk cósmico de tons ecológicos.

6) “Bieventuranza” – Chancha Via Circuito – Num lugar montanhoso e deserto, uma mulher, vestida com um poncho, está sentada em cima de uma lhama, que usa uma máscara psicodélica. A imagem da capa de “Bieventuranza” vale as tais mil palavras e serve bem para descrever o clima esotérico do quarto álbum do produtor argentino Pedro Canale, um “road album” que faz sonhar com estradas beirando os Andes, enquanto no rádio toca uma lenta e envolvente mistura de cumbia, dub e música folclórica.

7) “Villa Tereze” – Oh Shu & Biomen – Para os interessados, a Villa Tereze é um misto de hotel e “retiro artístico”, localizado em Pergola, Itália, ao lado de um mosteiro e uma vinícola. Foi nesse bucólico espaço que a dupla japonesa Oh Shu (violão) e Biomen (teclados) se reuniu, durante dois meses, para gravar um álbum. O resultado é uma jóia instrumental, mezzo acústica, mezzo eletrônica, salpicada de delicadas melodias. Se “Beleza roubada”, de Bertolucci, fosse um anime, “Villa Tereze” seria sua perfeita trilha-sonora.

8) “Paz e amor” – DJ Lilocox – O DJ Lilocox é uma das estrelas na coroa da Príncipe Discos, gravadora que comanda o  eletrizante mundo da “batida” em Portugal – o polirritmo funk dos nossos parentes europeus. No seu EP de estreia, ele sapateia em cima das bases do estilo – intrincadas programações de bateria, linhas de baixo minimalistas, fiapos de melodia – em cinco valiosas faixas instrumentais, que mastigam, com dentes de ferro, house, kizomba, techno, footowork, samba e kuduro. Foda-se!

9) “Sonora digital” – Ataw Allpa & DJ Nirso – Embaixador dos novos sons do Equador, o músico e produtor Ataw Allpa misturou suas ferramentas musicais com as do DJ Nirso, de São Paulo, e juntos geraram esse caloroso álbum de dez faixas, no qual cumbia digital, tecnobrega, forró e carimbó se beijam, se abraçam e dançam coladinhos. Na pista, estão também os convidados Catarina Dee Jah, Uaná System (de Waldo Squash), o chileno Senõr Chancho, o colombiano Pablo Diaz e o peruano Triblin Sound. Uma grande festa tropical, que tem até uns cantos de “Fora Temer”.

10) “La contra ola” – Vários – Sub-intitulado “Synth wave and post punk from Spain 1980-1986”, essa coletânea revela as pioneiras experimentações eletrônicas e a postura libertária de um grupo de artistas espanhóis que, sob a influência do punk e com uma bateria eletrônica na mão, surfou as primeiras ondas democráticas no país após o franquismo.  Arrume o mullet e as ombreiras ao som de “Moscú está helado”, com Esplendor Geométrico, e “Autogas”, com TodoTodo.

11) “You will know nothing” – Here Lies Man – A ideia de casar a levada do afrobeat com os riffs do metal, de fazer Fela Kuti e Black Sabbath andarem juntos é surpreendentemente tentadora, para o horror dos segregacionistas musicais. Segundo álbum do grupo de LA, liderado pelo guitarrista norte-americano, de ascendência latina Marcos Garcia (Chico Mann, Antibalas), “You will know nothing” é desafiador, provocativo, e anti-racista por natureza, provando que bater cabeça e rebolar ao mesmo tempo dá um barato multicolorido.