Ailum na rua, na chuva e na cidade

Ailum é Marano, baixista da Banda Mais Bonita da Cidade: estreia em álbum solo com sonoridade cosmopolita
Os animais, as nuvens, a chuva, o trovão, o Sol, a Lua e a floresta (ou o que restou dela), todos estão, de alguma forma, presentes na voz de Taká Owe Fulni-ô. Integrante do povo indígena que carrega no nome – os Fulni-ô, estabelecidos em Águas Belas, Pernambuco -, ele canta uma fábula antiga, mas infelizmente recorrente, em “Ywek´ detsahe”, faixa que abre “Quem me salvará sou eu”, álbum de estréia de Ailum.
Acompanhado pelo sobrinho Thaydjo Owe Fulni-ô e pelo coral infantil Curumim, de Curitiba, Taká fala sobre um grande espírito que deu a terra para o ser humano cuidar – grande espírito vacilou nessa – e viu a ganância deste destruir quase tudo. Envolvido pelo encantador arranjo da música, desenhado por percussão, tuba e trombone, ele termina dizendo que é preciso aproveitar as chances que restam – e restam poucas num Brasil cada vez menos verde – para restaurar a harmonia e viver em paz.
– Encaro isso como uma reza – conta Ailum, alter-ego de Marano, baixista d’A Banda Mais Bonita da Cidade, que conheceu Taká durante uma das incursões dos Fulni-ô pela capital paranaense. – Eles costumam se dividir em grupos e viajar pelo país fazendo apresentações e vendendo seu artesanato. Uma vez por ano, passam por Curitiba. Foi durante uma dessas visitas que conheci Taká. Como tinha essa idéia de convidá-lo para uma participação no disco, esperei que seu povo voltasse à cidade para tornar isso realidade. E valeu a pena. Ele trouxe seu sobrinho ao estúdio, que dialogou muito bem com as crianças do Curumim.
Conexões espirituais estão também na gênese do projeto, que ganhou o título após Marano encontrar um antigo álbum do saudoso Dominguinhos, “Quem me salvará sou eu” (de 1980), numa loja de discos de Londrina em meio a um garimpo de vinis. Através dele e da música “Forró em Rolândia”, Marano abriu uma janela no tempo e teve uma emocionante visão familiar.
– Meu pai era da Paraíba e veio morar no Paraná, em Rolândia, onde eu nasci. Ele costumava organizar festas e eventos. E sempre me contava da vez em que trouxe Dominguinhos para tocar num clube da cidade. No dia seguinte, teve um churrasco durante o qual o Dominguinhos disse que o improviso instrumental que tinha feito na véspera, no final do show, ia se chamar “Forró em Rolândia” – lembra ele. – Quando encontrei o vinil e achei a música, lembrei de toda essa história. Como meu disco é sobre renascimento, resolvi batizá-lo de “Quem me salvará sou eu”.
Com onze faixas – entre elas, “Recomeço”, cujo clipe (abaixo) o site lança hoje, com exclusividade -,o début de Marano como Ailum, nome descoberto por ele num texto do poeta libanês Khalil Gilbran, foi gravado entre agosto de 2014 e agosto de 2017, em modo respiração profunda, sem atropelos e sem pressa.
– Por conta do trabalho com a banda, costumo tocar de quinta a domingo, toda semana. Como não queria fazer o disco com energia travada e desejava que tudo fluísse de forma agradável, comecei fazendo sozinho, no meu tempo, um loop aqui, uma batida ali. Quando ficava cansativo, parava tudo.
Aos poucos, o trabalho foi se fortalecendo com parcerias e participações. Com o produtor Du Gomide e o baterista Denis Mariano, Ailum forjou a essência de “Quem me salvará sou eu”, numa singular combinação de texturas, batuques, programações e melodias (“Um som mais global e menos indie rock”, resume). Depois, foi trazendo vozes que pudessem protagonizar as letras, boa parte delas feita de reflexões pessoais. Foi assim, por exemplo, que “Ceci Iaraê”, composta para celebrar a chegada das duas sobrinhas do autor (“Do amor maré/Do ventre o luar/Rebenta/Placenta/Ela tá pra chegar”, diz a letra), ganhou o colorido das vozes de Lilian e Layane Soares, do grupo Tuyo. As duas também estão presentes em “Já viveu em mim”, poética recordação de amores passados.
– “Mana” eu fiz para minha irmã, que estava em meio a um doloroso processo de separação. Convidei, então, Uyara (Torrente, vocalista d’A Banda Mais Bonita da Cidade), que por sua vez chamou outras meninas para cantar com ela – explica ele.
Com o conteúdo pronto, veio a hora do molho final. E ele ficou a cargo de dois grandes chefs da mixagem dub: Victor Rice e Buguinha Dub. Foram eles os responsáveis pela suave desconstrução das canções e pela valorização dos espaços existentes entre elas, à moda jamaicana.
– Eu achava que o disco estava com muita informação e precisava de um respiro. E o Victor e o Buguinha foram perfeitos nesse arremate final. Graças a eles, ficou um trabalho com jeito de água, que te carrega, mas deixa que você flutue nela.
Foto de divulgação/Ana Momm