Tantão atravessa uma boa turbulência

Tantão está descoberto: tardio álbum de estreia, ao lado da dupla Os Fita, exposição e participação em peça de Felipe Hirsch (Foto de Marcelo Mudou)

Tantão viu um gatinho. E em vez de um confronto destruidor, do tipo Frajola vs Piu-Piu, buscou o diálogo. Tentou cercar o animal pelos cantos do estúdio da Rádio Lixo, numa tranqüila rua no Estácio, mas a conversa não evoluiu. O bicho não pegou.

– O gatinho se assustou e fugiu. Acho que nunca mais vai voltar – conta ele, antes de soltar uma estranha gargalhada.

Do episódio, restou a inspiração para a surreal letra de “Oi cat” (“Oi cat, oi cat/O quê que você quer comigo/Eu não tenho casa/Oi cat oi cat/Só falo com cat/Cat cat cat cat”), declamada por ele por cima de uma trovejante base eletrônica criada pelos produtores Cainã Bomilcar e Abel Duarte, integrantes do coletivo de arte sonora que dá nome ao estúdio (e que acompanham Tantão como Os Fita). Gravada numa sessão única, na noite de 22 de março de 2016, a faixa é uma das dez que compõem o recém lançado “Espectro”, tardio álbum de estréia dessa mitológica e errante figura do underground carioca, que toca hoje na Audio Rebel, a partir de 20h. A abertura é de Lucía Santalices.

– Tantão é muito inteligente e articulado e ao mesmo tempo muito doido e indomável – arrisca Bernardo Carvalho, do selo Quintavant, especializado em sons tortos, por onde o disco foi lançado. – Ele tem um modo de ver as coisas que é diferente de tudo. E as letras dele são geniais (sim, toca aqui, Bernardo).

Ex-integrante do venerado Black Future – um corpo estranho no colorido dos anos 80 -, Tantão (Carlos Antonio Mattos) atravessou o túnel do tempo em movimento curvilíneo desuniforme. Sobrevivente de uma Lapa que era mais selvagem do que legal, viveu como se fosse o personagem de uma letra de Lou Reed ou um freqüentador da Factory de Andy Warhol. Brigou, xingou, beijou, desenhou, pediu um troco, pintou, abraçou, cuspiu, foi cuspido, riu, pediu mais algum, bateu, dançou, apanhou, mas não caiu. Ficou de pé – quase sempre trôpego, mas de pé. E hoje, quase trinta anos depois do lançamento de “Eu sou o Rio“, solitário álbum do BF, gravado numa major com a interferência de Edgar Scandurra, Edu K, Paulo Miklos e Chacal, ele vive um momento estranho: uma boa fase, possivelmente a melhor de sua carreira, de músico e artista plástico.

– Ah, sei lá se tem isso – desconversa.

Além dos shows de lançamento de “Espectro”, que já levaram Tantão e Os Fita para o palco do Circo Voador e para o festival Eletronika, em Belo Horizonte, o grupo vai participar, como convidado especial, da nova peça de Felipe Hirsch, “Selvageria”, que estréia no final do mês, em São Paulo.

– A gente vai entrar pra tocar “Refugiados” – adianta ele, referindo-se a uma das músicas de “Espectro” (cuja letra diz “Navegar navegar/Somente o mar/Sem sem porto para atracar/Somente o mar/Sem porto”)

La la la land: no Circo Voador, abrindo um “portal perigoso maravilhoso barra pesada” para o Planet Hemp (Foto de divulgação)

No Circo, abrindo para o Planet Hemp, apoiado por um excelente sistema de som e por um telão que tentava traduzir sua obra, Tantão foi o anti-Rogério Flausino de sempre: indócil, feroz, imprevisível, correndo alucinadamente de um lado para o outro do palco, a bermuda quase caindo, segurando um boné em cada mão, enquanto os Fita soltavam e apertavam a pressão . “Abrimos um portal/Letal, portal perigoso maravilhoso/Barra pesada/Duas toneladas de barra pesada”, cantou a dica em “Portal”.

– Montamos o show a partir do disco, mas criamos novos arranjos e nem tudo se repete – esclarece Bomilcar. – Tentamos sempre deixar o Tantão bem à vontade para cantar do jeito que quiser. Ele é que nos guia.

No festival Eletronika, em Belo Horizonte, teve gente que até dançou: “O show foi fabuloso”, diz o curador Rafael Mendonça (Foto de Flávio Charchar)

No palco do Eletronika, que chegou à sua 18ª edição, “neguinho até dançou”, segundo Tantão, esse Hellboy de São Gonçalo.

– O show foi fenomenal – garante Rafael Mendonça, um dos curadores do festival. – Ele não poderia ficar de fora do Eletronika. Esse trabalho do Tantão com Os Fita é um dos melhores discos do ano desde já (simtoca aqui, Rafael).

Para o show de hoje na Rebel, Tantão diz que vão rolar duas músicas novas: “Vai dar bug” e “Jogação”. Mas nunca se sabe. Depois, em dezembro, ele decola em outra direção, assumindo o lado de artista plástico numa exposição na galeria da loja La Cucaracha, em Ipanema, ao lado de Fernando de La Rocque. Mas reconhece que falta completar alguns quadros, pelo menos uns cinco.

– Cara, eu gosto de turbulência – resume ele, que não está aqui para explicar.