Thundercat e todo esse encanto do jazz

Com “Drunk”, Thundercat se une a Josef Leimberg e Yussef Kamaal em magias com jazz, hip-hop e soul eletrônico
De Los Angeles a Londres, há uma brisa diferente tocando no ar. E não é apenas o saxofone de Kamasi Washington, que se apresenta no Rio em abril, mostrando o som progressista do seu álbum de estreia, “The epic”, que conecta John Coltrane com Flying Lotus (por cuja gravadora, Brainfeeder, foi lançado). Revitalizada, a aba “fusion”, que já abrigou tantos outros discos avançados (e alguns embaraços) nos anos 70, cresce ainda mais com os novos lançamentos de Thundercat (“Drunk”), Josef Leimberg (“Astral progression”) e Yussef Kamaal (“Black focus”). Em comum a todos eles – e a outros craques como Ronald Bruner Jr*. e Robert Glasper – a passagem do jazz para os estados de hip-hop, soul e funk eletrônicos.
Nessa rede de experimentos, o local de LA Thundercat (Stephen Burnett) é um destaque natural. Cantor, baixista extraordinário (cruzamento insano entre Bootsy Collins e Jaco Pastorius), ex-integrante do Suicidal Tendencies e cujo extenso currículo inclui gravações com Erykah Badu, Kendrick Lamar e Snoop Dogg, ele passou lindamente por dois trabalhos anteriores (“Apocalypse” e “The golden age of apocalypse”) até chegar num disco que, enfim, não traz “apocalypse” no título. Variado e ainda assim estranhamente coeso – como zapear a TV, chapado, durante a madrugada, disse bem o colega do “Pitchfork” – “Drunk” bebe fundo na fonte do jazz funk setentista, às vezes fazendo uma curva para lembrar o pop radiofônico daquela época (caso da evocativa “Bus in these streets” ou da explícita “Show you the way”, com as participações de Michael McDonald e Kenny Loggins). Em outros momentos, acompanhado pelo próprio Kamasi Washington, Thundercat parece tirar a música de dentro de um cartucho de videogame (“Blackkk”, “Tokyo”) ou fazer o rap dançar juntinho, ainda que trôpego (“Walk on by”, com Lamar, e “Drink dat”, com Wiz Khalifa).
Também de LA, o trompetista Josef Leimberg voa, igualmente alto, nas fusões em seu début, “Astral progression”. Com um currículo parecido com o de Thundercat, e as mesmas referências e amizades (Lamar, Washington, Snoop Dogg etc), ele justifica o título, criando combinações mágicas que parecem refletir a lei de Lavoisier, aquela do “nada se perde, tudo se transforma”, caso da sua versão de “Lonely fire”, gravada por Miles Davis em sua fase fusion. Menos enviesado que o estilo de Thundercat, o jeito de Leimberg produzir é docemente hippie, levando o hip-hop e o jazz por uma jornada multicolorida com zero turbulência, narrada pelas rimas fluidas de Georgia Anne-Muldrow e Bilal, e decorada pelas majestosas cordas do maestro Miguel Atwood-Ferguson. No encerramento, com os 14 minutos de “Psychedelic Sonia”, está a reprodução de um papo de Leimberg com a mãe sobre a complexidade da vida e nosso lugar no cosmos. Seda não incluída.
Do outro lado do Atlântico, Yussef Kamaal segue caminho parecido com o de Thundercat e de Josef Leimberg, só que sem tantas flores na cabeça. Nascida na capital inglesa, do cruzamento entre a bateria e a percussão de Yussef Dayes e os teclados de Kamaal Williams (também conhecido pelo projeto houseiro Henry Wu), a dupla faz em “Black focus” – lançado pelo selo Brownswood, de Gilles Peterson – um tributo a Herbie Hancock e Mahavishnu Orchestra, via batidas quebradas e afrocêntricas. Totalmente instrumental, o disco lembra, às vezes, o trabalho de outra dupla, 4 Hero, e também o nosso Azymutyh em seus melhores momentos. Em “Rememberance”, por exemplo, o piano Rhodes de Williams serpenteia, indomável, em torno da levada jungle de Kamaal, num clima de jam que se espalha pelo restante do disco de 10 faixas. A conexão do Yussef Kamaal com os seus colegas norte-americanos só não é completa porque o grupo, que ia ser apresentar no festival South by Southwest (SXSW), que rolou há duas semanas no Texas, teve o visto de entrada de Yussef negado – imagina, com esse nome – por conta das obscuras orientações do governo do sempre desafinado presidente Donald Trump.
Cotações (em Miles Davis)
“Drunk” – Thundercat: 4,5 Miles
“Astral progression” – Josef Leimberg: 4,3 Miles
“Black focus” – Yussef Kamaal: 4,3 Miles
Foto de divulgação
* – bem lembrado por Carlos Eduardo Lima, pós-fechamento, que falou dele aqui.