Numa manhã de chuva com Arthur Verocai

Autor de um cultuado álbum de 1972, o maestro volta com disco de inéditas, pelo selo Sesc, seu primeiro trabalho em quase dez anos
De repente, o barulho do silêncio. Computador, caixas e mesa de som, tudo se vai com um apagão, talvez causado pela forte ventania daquela manhã. Não dura mais que um minuto. Aos poucos, as coisas voltam a funcionar, menos o computador. Meu vizinho se abaixa, confere as tomadas, liga e desliga o aparelho, mas nada acontece. Tento ajudar, sem muito sucesso. Ele acha que alguma coisa pode ter queimado e teme pela placa. Uma pena, estava tão bom ouvir tudo aquilo.
Por causa de um engarrafamento na fila do supermercado, tinha chegado alguns minutos atrasado no apartamento desse meu vizinho – o maestro Arthur Verocai , cantor, multi-instrumentista, compositor e arranjador supremo das galáxias, autor do cultuadíssimo álbum homônimo, de 1972, que fez a cabeça de muitas cabeças, principalmente no hip-hop (entre elas, a do saudoso J. Dilla), sem mencionar gente atenta como Ed Motta e Kassin. Vim com uma porção de pão de queijo, que foi entregue com alguma vergonha – antes, quentinha, ela foi apresentada miseravelmente úmida por causa da chuva no trajeto. A gentileza perdeu a crocância.
Os longos braços de Verocai – um elegante artesão de cordas, que já vestiu a música de Elis Regina, Jorge Ben Jor e Gal Costa, entre outros – se desvencilham dos cabos e alcançam seu laptop, um MacAir. Com o aparelho plugado na pequena mesa de oito canais, estamos de volta, prontos para seguir ouvindo seu novo álbum, “No voo do urubu”, que vai ser lançado em breve pelo Selo Sesc (de São Paulo), com participações de Criolo, Mano Brown, Seu Jorge, Danilo Caymmi, Vinícius Cantuária, DJ Nuts e grande elenco. É o primeiro trabalho solo de Verocai em quase dez anos, desde “Encore”, lançado em 2007 pelo selo britânico Far Out Recordings. Na capa, o desenho de um brasão revela as origens italianas da família de Verocai, filho de mineiros, nascido no Rio há uns bons 70 anos.
Apesar de celebrado entre DJs e artistas de sons avançados , como Flying Lotus e o grupo BadBadNotGood , e ter feito recentes parcerias com Marcelo Jeneci e com o rapper Shawlin, Verocai não caiu na doce tentação de tentar modernizar seu som – celebrado em 2009, com um grandioso show em Los Angeles, dentro da série “Timeless”. O novo disco “apenas” refina sua assinatura, uma personalíssima mistura de MPB, bossa nova, jazz, samba e soul, com toques cinematográficos, graças aos seus sublimes arranjos de cordas (irresistível pensar como eles renderiam bem em balanços disco e house). Há pouco tempo, o francês Sebastien Tellier usou a palheta de sons de Verocai para emoldurar o álbum “L´aventure”, com encantadores resultados.

Verocai e o produtor francês Sebastien Tellier: parceria no álbum “L´aventura”
Sentado à minha frente, ele sorri, vez ou outra, sempre discretamente, e faz pequenos comentários enquanto as músicas do álbum – que vão ser apresentadas ao vivo no dia 16 de dezembro, em SP – desfilam pelas caixas. Como é uma visita informal, seguro a natureza jornalística e não anoto nada. Tento ser fino como meu anfitrião e apenas curto a onda. E que onda boa! Ele bate mais intensamente no embalo de “Cigana”, que traz Mano Brown – que já esteve um par de vezes naquele mesmo apartamento, trocando ideias com o maestro – cantando e improvisando suaves rimas fora da letra. A ponte com seu célebre disco de estréia – que devolveu com lirismo e sutileza a truculência da ditadura militar– é assegurada pela participação de Criolo na consciente “O tambor” (e a letra que fala de alguém que “mastiga a miséria no pão”).

Com Criolo, um dos convidados do novo disco, ao lado de Mano Brown, Seu Jorge, Danilo Caymmi, Vinícius Cantuária e DJ Nuts.
Não há só palavras. Das três faixas instrumentais do disco, “Desabrochando” foi inspirada pelo neto de Verocai, Miguel . Nas outras, a classe é mantida pela integração de craques como Itamar Assiere (piano), Ivan Conti (bateria), Alex Malheiros (baixo) e Robertinho Silva (percussão). Durante a audição delas, Verocai cantarola trechos vocais por cima, num idioma indecifrável , que, brinca, talvez sejam de um passado indígena.
Quando acaba, tenho o corpo em pique de energia pela carga de música ouvida. Verocai, mais sensato, pretende almoçar, afinal, já passa do meio dia. Descemos juntos. Na porta do prédio, um orelhão azul está sendo instalado. Um orelhão em 2016! É para a gravação de um comercial, diz a produtora, notando nosso estranhamento. Em casa, minutos depois, aprendo que os primeiros orelhões chegaram às ruas do Rio em 1972, mesmo ano em que saiu “Arthur Verocai”. Penso em “Black mirror”, mas não cai a ficha. Foi coincidência mesmo.
(Alto, foto de Cristiane Britto; centro, divulgação, acima, foto de Vera de Andrade)
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eu tenho esse dvd da timeless, muito lindo!!!!