Na onda do Reggae Sumfest 2016

Na onda do Reggae Sumfest 2016

O aperto é seguro e forte, bem forte. Minha tendinite (LER) acusa o golpe e a dor é grande. Mas não posso soltar. Do outro lado, está Andrew Holness, primeiro ministro da Jamaica. Estamos sendo apresentados no camarote da Jamaica Tourist Board – a Embratur da ilha – durante o Reggae Sumfest*, em Montego Bay, divulgado como “o maior show de reggae da Terra”. Não é todo dia que tenho um premier na mão (direita). O cerco é intenso, todos querem falar ou tirar uma foto com ele, afável, de calça jeans, blusa social e tênis, seguido por apenas dois desconfiados seguranças. Então, antes que o perca, improviso uma pergunta qualquer sobre as ligações entre Brasil e Jamaica através da música. E Holness, uma espécie de Obama caribenho, entra no groove.

– Acredito que o reggae já vem unindo a Jamaica com o Brasil faz tempo – diz ele, 44 anos, pela segunda vez no cargo, que assumiu em março deste ano, com a vitória do JLP (partido trabalhista) nas eleições gerais. – Temos a mesma paixão pela música e acho que ela pode ser a ferramenta para aproximar nossas culturas ainda mais. Sem mencionar que todo jamaicano é fã do futebol brasileiro. Afinal, vocês deram ao mundo Pelé.

Andrew Holness.

O premier jamaicano Andrew Holness (de óculos). À esquerda, o segurança desconfiado

Apesar de ser um dos ritmos mais influentes e celebrados do planeta, o maior produto cultural de exportação do país comandado por Holness – que se despede e é levado pela comitiva para outro camarote – passa por um momento delicado. Desde 2002, quando Sean Paul estourou com o álbum “Dutty rock”, nenhum artista local de reggae consegue destacar-se fora do país. Comentários ou letras homofóbicas atrasaram ou destruíram a carreira internacional de possíveis sucessores, como Elephant Man, Sizzla e Beenie Man, que sofreram com boicotes, protestos e cortes de eventos. E nos últimos anos, a parada reggae da “Billboard” – referência mundial de vendagem de discos – tem sido liderada por estrangeiros que abraçam o estilo, como Snoop Lion (Snoop Dog versão “rasta”) e Joss Stone, que, para revolta geral, foi escolhida “artista reggae” de 2015, por conta do álbum “Water for your soul”.

Internamente, o cenário também é nebuloso. O vinil desapareceu, o CD encontra-se em queda livre (como em toda parte) e os sites de streaming ainda não se estabeleceram totalmente por causa da pirataria e de falhas nos direitos autorais no país (somente em março o Tidal chegou à Jamaica).

– Realmente, hoje é complicado viver da vendas de discos em qualquer lugar, principalmente na Jamaica. Por isso, tenho direcionado minha produção para o mercado internacional – me diz o veterano cantor Barrington Levy, indicado ao Grammy em 2015 pelo álbum “Acoustical Levy”, durante uma coletiva de imprensa do festival. – Mas nunca vou virar as costas para a Jamaica. Meu maior prazer é tocar em casa, para o público do meu país.

É justamente esse o sentimento por trás do lema do Sumfest 2016, “Our music, our festival” (“Nossa música, nosso festival”). Prestes a completar meio século e sob nova direção – seus direitos foram comprados por Joe Bogdanovich, empresário americano, que há anos atua no mercado local à frente da produtora Downsound Records – o evento cortou a chamada “International night”, por onde já passaram astros pop como Beyoncé, Kanye West, Rihanna e Alicia Keys – para se concentrar numa escalação 100 % jamaicana.

– Para fortalecer a cena local, fomos levados a tomar essa medida nesse primeiro ano de parceria – diz Bogdanovich, que parece saído de uma cena do filme “The blues brothers”. – Os artistas jamaicanos têm que ser valorizados. São eles que fazem o reggae acontecer durante o ano todo.

Um drone que sobrevoa a Catherine Hall Complex – onde foi instalada a “cidade do reggae” – revela outra novidade do festival este ano: a transmissão ao vivo pela internet (nos moldes dos grandes eventos de pop/rock), inclusive no sistema de realidade virtual/360º. As imagens que o aparelho captura desfazem, ao menos momentaneamente, as impressões de crise pairando sobre o gênero. A primeira das duas grandes noites do festival – dedicada ao dancehall, o batidão jamaicano – está lotada. Cerca de 20 mil pessoas, jovens pessoas, batem o recorde de público da história do evento, segundo os organizadores.

Em torno do palco, estandes de bebidas e comidas fazem o Sumfest parecer um festival como os outros. Mas aos poucos os detalhes saltam aos olhos e fazem você se lembrar que está Jamaica. Quase todo mundo carrega uma cadeira portátil, como aquelas de praia, para aguentar a maratona de shows, que costumam se estender até o sol nascer. Vuvuzelas apitam sem parar, saudando cada entrada de música. Volta e meia, os telões exibem pitorescos anúncios de oficinas mecânicas e de empréstimos de dinheiro. A bebida preferida é a saborosa cerveja local, Red Stripe, uma das patrocinadoras do evento.

As comidas giram em torno do prato típico, jerk food: carne ou frango defumados/marinados. E em diversos cantos da “cidade do reggae” – povoada por um público majoritariamente chocolate, salvo um ou outro grupo de turistas de pele rosada, com dreads pouco convincentes – é possível ver pequenos grupos, em pé, tranquilões, fumando e jogando dados, em cima de mesas cobertas por papelão, as notas de dólares trocando constantemente de mãos. O capitalismo na Jamaica pode ser selvagem como um bicho-preguiça.

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No backstage, a movimentação é frenética, artistas entrando e saindo para entrevistas. Do palco, vem o som mais grave do universo das galáxias. Duas bandas, Ruff Kutt Krew e Warrior Love, se alternam no apoio, com levadas sintéticas e minimalistas, enquanto os deejays (como os MCs são chamados na Jamaica) se sucedem nos holofotes. O novato Devin Di Daksta, a esquentada Spice, os emergentes Agent Sasco e I-Octane, e o “rei” Bounty Killer roubam o show, iniciado às 21h e finalizado às 7h30m, quando já virei fumaça.

A noite seguinte, chamada “Reggae Night”, dedicada a um som mais tradicional, tem um pouco menos de gente, cerca de 15 mil pessoas. Há mais casais e dreads grisalhos. Uma banda só, a Warrior Love, carrega a noite nas costas, enquanto alguns canarinhos do reggae soltam suas belas vozes. Os veteranos Sanchez – elegante, com um set cheio de romance, no qual homenageou os saudosos Gregory Isaacs e Dennis Brown – e o próprio Levy – funky até a semente, com participação de Beenie Man – ganham o ouro da maratona reggae, encerrada, novamente, já com o dia claro.

Depois, hotel, cama grande, sono bom…

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* Viajei a convite da Jamaica Tourist Board.