
A música de protesto de Fatima Al Qadiri é instrumental
“Neste fim de semana, alguns arruaceiros transformaram um protesto pacífico em Wall Street em um violento caos. Eles portavam sprays de pimenta e armas. E usavam insígnias”, ironiza o comentarista Lawrence O’Donnel, da rede de televisão norte-americana MSBCN, sampleado na faixa “Blow”, do novo álbum de Fatima Al Qadiri, o recém-lançado “Brute” (Hyperdub).
Num momento em que vozes reacionárias, cada vez mais altas e estridentes, seguem inflamando ouvidos em toda parte, o disco da produtora e artista visual, nascida no Senegal, criada no Kuwait e radicada nos EUA, trafega no sentido contrário e consegue um feito inusitado: fazer música de protesto – politizada, progressista e incisiva – de forma totalmente instrumental.
Com o trabalho, Fatima junta-se a nomes como Holly Herndon, que abordou os vazamentos da NSA (agência de segurança norte-americana) em seu álbum “Platform” (de 2015, quando a entrevistei). Faz coro igualmente com J.S. Aurelius, que ergueu-se contra o uso de drones como armas de guerra com o também recém lançado “Goofin´ drones”, cujos sons extremos foram gerados a partir de um programa hackeado, capaz de botar abaixo esses aparelhos. Em comum, todos nessa linha do tempo têm subvertido – com narrativas fora do comum e uso criativo da tecnologia – os cânones do que se conhece como música de protesto, tradicionalmente marcada pelas “tags” #voz e violão, #folk , #guitarras e # rock.
Além de O’Donnel, a única outra voz ouvida em “Brute”, também através de samplers, é a da sargento (aposentada) da polícia de Los Angeles, Cheryl Dorsey, falando sobre violência policial em “Power. Há também gritos da multidão, na impactante faixa de abertura, “Endzone”, capturados durante os protestos de Ferguson (EUA) em 2015, em reação à morte de um adolescente negro, desarmado, por um militar branco, ocorrida um ano antes. Fora isso, o disco é pontuado por barulhos de sirenes, helicópteros e do assustador canhão sonoro LRAD (de Long Range Acoustic Device), usado para dispersar manifestantes.
Trazendo uma reprodução do trabalho do artista plástico Josh Kline na capa – uma imagem de um Teletubbie com trajes da SWAT -, “Brute” foi inspirado pelos conflitos raciais de Ferguson e também de Baltimore, Nova York e outras cidades americanas. Fatima assistiu a tudo pela televisão, enquanto se recuperava de uma cirurgia no joelho, na casa de sua família, no Kuwait. Angustiada e indignada com a brutalidade das autoridades, ela compôs ali boa parte das 11 faixas do disco – como “10-34”, código policial para tumulto -, completadas quando voltou aos EUA. “O ponto em que estou tentando tocar é que o direito ao protesto tem sido cada vez mais reprimido, seja nos EUA ou na Espanha, por exemplo. E para mim, isso é assustador, já que venho de um país onde esse direito praticamente inexiste”, afirmou ela em entrevista “a “Vice”.
Recheando tudo, a mesma sonoridade repleta de gélidos sintetizadores e linhas de baixo que remontam ao grime que Fatima já havia usado no seu trabalho anterior, o igualmente assombroso “Asiatisch” (sobre o qual conversamos em 2014). Nada que lembre marcos da contestação musical como “Blowin´ in the wind”, de Bob Dylan, “Ohio”, de Crosby, Stills, Nash & Young , “What´s goin´on”, de Marvin Gaye ou mesmo “Killing in the name”, do Rage Against Machine. Mas como disse o próprio Dylan, “os tempos , eles estão mudando”. E vozes, violões e guitarras parecem não ser mais suficientes para embalar as complexas demandas da era digital.
Cotação: punho cerrado pra cima (segurando o celular).
(Foto de divulgação)